Cuidado! Os quintais estão pegando fogo! Cuidado! As partículas de fumaça se acumulam nos pulmões! Cuidado! O calor resseca as nossas mucosas! Cuidado! Os animais selvagens desalojados podem cruzar seu caminho!
Eu me peguei pensando nas variações da palavra cuidado.
Quando o cuidado deixa de ser uma ação cotidiana e ganha contornos de alarme, é porque tudo vai mal. Vocês se lembram da época da pandemia da COVID? A vida era isso: não encostar em maçanetas e lavar pacote de arroz. Em suma, tomar cuidado.
Essas últimas semanas me remeteram a esses tempos sombrios. Há uma nova ameaça a nossos pulmões e, desta vez, ela invade até as casas mais precavidas. Nos grupos de WhatsApp, circulam recomendações de umidificadores de ar. Fazer lavagem nasal parece ter virado o novo pão de levain. Vejo meu maior medo se concretizar: adaptar-se à crise não nos radicaliza coletivamente, o cuidado parece se tornar uma questão de estilo de vida individual (citando timidamente bell hooks).
E nos encontramos de novo naquela mesma encruzilhada, vivendo na nóia do “cuidado!” individual e não na prática do cuidado coletivo (eu inclusa, fui a primeira a comprar máscaras e um umidificador). Me parece, então, muito sintomático que a palavra mais repetida, seja também a mais negligenciada pelo modo de vida no qual nos inserimos. Afinal, se chegamos até aqui, é porque o cuidado com a (nossa) vida na Terra sempre foi colocado em último lugar nas prioridades do capital.
Respondendo àquele chamado de “fazer alguma coisa”, minha reação ao mais recente sinal da emergência climática foi, é claro, intensa. Passei a ler tudo que podia sobre ela, me envolver em coletivos, marchas, fazer planos de reflorestar sozinha um imenso terreno baldio (logo eu, que esqueço até de regar minha Jiboia, tadinha). Para além do meu trabalho — que já é atravessado pela crise climática, o tema passou a me consumir por inteira a ponto de roubar também meu descanso. Não importava — eu precisava cuidar do planeta de todas as maneiras possíveis.
Mas o trabalho de cuidado, sabemos, pode ser dos mais exaustivos e frustrantes (e não, não estou comparando a minha militância ao cuidado de um ser humano, em termos de volume de trabalho). Quando se cuida de um corpo tão grande como o planeta, é fácil também a gente se sentir impotente, porque, na verdade, é o que somos.
Como não poderia ser diferente dos últimos quatro anos, a ansiedade climática virou de novo protagonista do palco da minha terapia e dos papos de mesa de bar. A minha tônica era: “eu preciso fazer MAIS, eu preciso fazer MELHOR”.
Aí, foi a minha terapeuta, companheiro e amigos que mandaram a real. Variações de : “ei você, PARA, respira (se der) e, principalmente, se cuida”. Apontaram, com razão, que eu estava aplicando à tarefa do cuidado uma lógica de crescimento exponencial, uma lógica individualista de quem cresceu vendo filme de herói e quer salvar o mundo sozinha, uma lógica oposta à própria natureza do cuidado.
Eu estava esquecendo algo essencial: eu também sou planeta.
E, ao me negligenciar, minhas ações eram, no mínimo, contraditórias.
Ninguém cuida do planeta sozinho.
Mas também, ninguém cuida de si sozinho.
No final das contas, a verdadeira lição de cuidado quem deu foram as pessoas que me cercam e isso me apontou um possível caminho e me deixou, vejam vocês, quase (QUASE) otimista. Por isso, resolvi compartilhar aqui.
Às histórias climáticas, eu estou aprendendo, é raro atribuir uma moral. Porque, a verdade é que ninguém sabe o que fazer. Mas, se posso tirar uma desses últimos tempos vividos é esta: o cuidado é uma teia. Se um fio é rompido, balançamos todos — humanos ou não (alguns menos do que outros, é claro).
O cuidado é uma teia e estamos por um fio, mas talvez seja esta rede que nos trará os recursos para sobreviver à escassez do capital, desde que nos dediquemos à tecitura com amor, trabalho, coletividade , imaginação e até um pouco de alegria.
Cuidar do planeta que arde, cuidar de si em um planeta que arde, talvez não precise necessariamente passar pelo consumo, tampouco pela exaustão exacerbada. Talvez tomar cuidado e praticar o cuidado não precisem ser coisas distintas. Quem sabe, ao tecer essa teia, a gente acabe tecendo também novos modos de vida. Longe de mim querer vislumbrar uma esperança, mas quem sabe…
Fico por aqui.
Ah, e como ninguém pensa nada só, deixo o link de um artigo que me ajudou a formular o texto de hoje: ‘Nothing comes without its world’: thinking with care, de María Puig de la Bellacasa, com um resumo em português no site da Editora Ubu.
Cuidem-se — de vocês, dos seus, do planeta e até a próxima!
Recomendações:
Um jogo de simulação em que você precisa cuidar do planeta! Não apenas tem muito a ver com a temática desta NL, mas é um jogo muito divertido, daqueles que fazem a gente esquecer do tempo. Os jogos têm essa coisa de fazer com que a gente se sinta menos impotente — Beecarbonize nos dá pistas de soluções sistêmicas para enfrentar o colapso ambiental. Eu não sei vocês, mas visto o que temos passado, um pouco de esperança — mesmo que simulada — é sempre bem-vinda.
Orientações do Ministério da Saúde para evitar exposição a queimadas.
Essa ideia da teia conversa bastante com uma percepção que eu tenho, difícil de verbalizar, sobre "resultados". No capitalismo a gente está acostumada a pensar em termos de resultado (mensurável), porém o que cada experiência minha mais detida (por exemplo, no meu último emprego que não tinha nada a ver com transição ecológica) é que o verdadeiro resultado é bem mais difuso, uma transformação lenta e profunda da maneira de organizar e interagir. Obrigada, Mari, pelas palavras tão oportunas!