A Terra tá esquentando e a gente aqui: se culpando.
dá pra viver no capitalismo e ser coerente com nossos valores?
Não.
*Sobem os créditos*
Ok, não é bem por aí, mas é quase e a gente precisa lidar com isso.
Oi,
Eu te escrevo de uma casa não muito longe da várzea do Rio Tietê. Neste mês, passamos pelo dia mais quente já registrado na Terra, o El Niño promete uma passagem avassaladora, o secretário-geral da ONU alertou para um planeta ‘em ebulição’ e um vídeo com um deep fake da Elis Regina provocou os mais acalorados debates na internet - e é (também) sobre este último tópico que vamos falar hoje.
Eu faço parte daquele grupo de pessoas que sempre fica sabendo do meme por último. O attenzione pickpocket, por exemplo, só chegou até mim esta semana. Nem eu, porém, saí ilesa da discussão sobre o vídeo da Elis Regina na Kombi. Algumas pessoas no meu feed se emocionaram. Outras, acharam um ultraje. Outras (com as quais me identifico), não deram muita bola.
Porém, alguns dias depois, a tal discussão chamou minha atenção: o produto vendido sob o slogan de “o novo sempre vem” era UM CARRO ELÉTRICO! E isso sim apertou meus mais profundos gatilhos. E aqui chegaremos enfim à questão de hoje:
É possível colocar em prática uma ética ecológica no capitalismo? Qual é o limite de nossa ação? Quando já fizemos o suficiente? Por que seguir fazendo, se o mundo já parece condenado?
Ok. São muitas questões. E eu tenho certeza de que você já esbarrou nelas também. Aliás, já te deixo um spoiler: não trarei a respostas, só a minha forma de lidar com a dúvida.
Em agosto de 2022, eu me inscrevi para um curso com um ativista famoso. Em toda a primeira parte do curso, ele falou sobre as catástrofes climáticas que nos aguardavam. Listou uma por uma e foi terrível, mas também bem elucidador: sem soluções sistêmicas, coletivas, a humanidade estava com os dias contados. Pois bem, foi aí que ele fez uma promessa: “No dia seguinte, trarei soluções”. E não é que ele trouxe mesmo? O mundo parecia já estar sendo salvo por um grupo de benfeitors que montava painéis solares e produzia carros elétricos sem que a gente precisasse fazer nada.
Era só seguir em frente e o capitalismo cuidaria de tudo.
Bem, não preciso dizer que a energia de mudança da aula anterior se converteu em desalento. Acreditar que podemos continuar vivendo da mesma forma e o mercado vai equilibrar tudo, inclusive a crise climática, é de uma desonestidade cruel. Quer um exemplo? Cada vez mais petroleiras usam placas de painéis solares para baratear os custos de exploração, aumentar a rentabilidade e, com isso, juntam créditos de carbono (!!!!). Ou seja, a produção de energia solar cresceu, mas isso não necessariamente implica que a energia proveniente de matrizes fósseis tenha diminuído. Entende?
Ah, mas onde a Elis Regina na kombi entra?
O carro elétrico tem se consolidado como o grande símbolo da transição para uma economia “mais verde”, se apresentando como solução milagrosa. Basta, porém, se interessar sobre a origem das baterias e o impacto da sua exploração para entender que é uma falsa solução. Aliás, é um princípio de solução, que só seria completa com o aumento considerável de transportes públicos, proibição de circulação de veículos nas cidades, viabilização de hidrovias e ferrovias e, é claro, diminuição dos deslocamentos, ou seja, propostas sistêmicas.
Qualquer solução para a crise climática é complicada. E é aí que mora o perigo.
Sim, porque é muito mais gostoso acreditar que dirigindo a kombi elétrica estamos salvando a humanidade, mas não estamos! Da mesma forma que não estamos salvando o mundo comprando em uma loja de fast fashion que diz que as origens de seus tecidos são confiáveis. É só greenwashing mesmo, mas disso talvez você já saiba.
A minha opinião impopular é que tampouco não estamos salvando a humanidade parando de comer carne, aderindo ao movimento lixo zero, fazendo composteira e comprando comida da agroecologia. Embora eu seja adepta fervorosa de todas essas práticas, elas são insuficientes. E isso faz mal para o meu ego e me paralisa, mas esta é a mais pura verdade. Para mim, o perigo é justamente este: saber que somos insuficientes e se deixar paralisar por isso.
Nossas atitudes em relação à mudança climática sempre serão falhas. E é esta articulação que eu queria abordar hoje. Então, se você está só scrollando e com preguiça de ler tudo, comece aqui.
Todo dia eu percebo o quanto as soluções que eu encontrei são pequenas. Sei que não comer carne é pouco, eu deveria ser vegana. Sei que comprar um creme de castanha de caju feito com mão de obra bem paga é insuficiente, se as mulheres que colheram os frutos tiveram as mãos queimadas pelo ácido.
Por que perder meu tempo, então? Por que levar saquinhos de pano para o empório à granel, se eu não sei a condição das lavouras de grão-de-bico? Por que me preocupar em não fazer lixo se, na volta pra casa, eu me deparo com fraldas descartáveis, sacolas de mercado, pacotes de salgadinho que vão demorar milênios a se decompor? Por que me engajar em um coletivo, se as políticas públicas ou qualquer ação conjunta são muito mais lentas do que as mudanças climáticas?
Eu admito que, muitas vezes, pensar na insuficiência da minha prática individual me paralisa sim e me dá vontade de jogar tudo pro alto.
Discutindo com meu companheiro sobre isso, ele, filósofo de formação, me trouxe uma perspectiva muito interessante: a de Levinas. Você conhece? Eu não conhecia.
O que Levinas faz é uma articulação entre ética e política. Resumindo muito: a ética é a nossa bússola moral e está aqui para lembrar que há sempre um norte mais distante, que nunca seremos bons o suficientes. Enquanto a política vem para dizer que é preciso seguir vivendo. É preciso fazer concessões. É preciso seguir em frente e fazer alguma coisa QUALQUER COISA pra avançar em direção à nossa ética.
Quando damos um passo político (parar de comer carne, se juntar a um coletivo, o que for), a ética vem para nos mostrar que ainda há muito a ser feito e não podemos nos contentar em parar aqui. Ao mesmo tempo, quando estamos paralisados por sabermos que jamais alcançaremos nossos ideia éticos, a política vem agir, dizendo que é preciso dar um passo, mesmo que imperfeito, mesmo que pequeno. É quase como um mecanismo de autorregulação que nos lembra a cada momento:
É preciso fazer tudo que está a nosso alcance e, se sabendo insuficiente, expandir nossa capacidade.
Depois começar tudo de novo.
Assim eu venho tentando orientar a minha prática ecológica, acrescentando uma variável, um sentimento para o qual ainda não acho que inventaram um nome em português: o prazer de estar fazendo algo alinhado os seus valores.
Há uma satisfação única em caminhar na direção da nossa ética, em dar passinhos de formiga no sentido daquilo que acreditamos. Aliás, ter ações cotidianas alinhadas a seus valores ecológicos é um conselho muito dado a pessoas que sofrem de ecoansiedade.
Por mais que a gente saiba que nunca vai chegar a um destino ideal, começar a caminhar é muito mais reconfortante do que hesitar na beira da estrada. Até porque, pelo caminho, vamos encontrando parceires que traçaram também suas próprias rotas e nos ajudam a andar melhor.
Vamos também entendendo o prazer das ações cotidianas que antes considerávamos sacrifícios: achando receitas sem carne muito mais saborosas (e saudáveis e baratas, diga-se de passagem), fazendo a festa junina mais bonita de todas com companheires do movimento social, sentido-se em um video game ao jogar bombas de semente nos canteiros públicos. Os pequenos fragmentos somados em vida vão ganhando cada vez mais sentido. Um sentido distinto daquele que os comerciais de carro querem nos empurrar goela abaixo. Um sentido muito mais singular e, acredito eu, infinitamente mais bonito.
Além disso, as várias horas de caminhada nos dão tempo para pensar modelos de superação de um sistema que leva nosso planeta à ruína.
Os momentos de paralisia ou vazio frente à impotência de nossa ação não vão embora, mas ganham novos contornos, são só parte do caminho, curvas. Sempre tem mais estrada depois.
Cortar este caminho com uma kombi elétrica (mesmo que dirigida pela própria Elis Regina) seria um atalho desonesto com todas as espécies, com a gente mesmo e com as bilhões de pessoas que deixaríamos para trás por não terem as mesmas condições materiais. Mas privilégios e justiça climática é assunto para uma outra hora.
Obrigada a todes pela leitura, pelos comentários, mensagens e pela troca desde a última cartinha.
Se gostou, compartilhe nas suas redes ou comente aqui. Feedbacks também são bem-vindos.
Se o mundo não acabar, nos vemos em breve.
Um beijo,
Mari.
Recomendações quentinhas (:
A terra tá esquentando e a gente aqui…. lendo.
Talvez um dia eu escreva uma edição da NL só sobre este livro. Poucas obras mexeram tanto comigo como esta. Vinciane se diz uma observadora de observadores de animais e faz o generoso exercício de transformar artigos científicos em prosa, para que possamos ser afetades pela mesma paixão que os objetos de suas histórias. Ela não só traduz lindamente a aranhidade das aranhas, a polvalidade dos polvos, como nos coloca frente a um conflito ético impossível, que sua protagonista resolve de maneira brutalmente honesta.
O livro me virou de cabeça pra baixo e me fez encarar a minha articulação ética x política de uma forma completamente nova. É uma recomendação que faço com entusiasmo e tem tudo a ver com o tema desta edição.
Eu fiquei conhecendo a Vinciane por intermédio da (perfeita) livraria Gato sem Rabo, que me chamou para uma roda de conversa sobre o livro. A gravação agora está disponível no Youtube, aqui vai o link. As intervenções das minhas companheiras de roda Fabiane Secches (@fabianesecches) e Carolina Ferreira (@_carolina_f) valem o clique!
A terra tá esquentando e a gente aqui… streamando.
“Ecocídio e Crimes Ambientais” (Tese Onze)
A Sabrina Fernandes, com seu canal Tese Onze, foi quem me apresentou ao termo “ecossocialismo”. Alguns anos depois, o canal segue relevante, mas seu encerramento foi anunciado esta semana. Deixo então minha singela homenagem, recomendando este vídeo do Samuel Silva Borges, que comenta a participação da tal marca de carros do deep fake em diversos crimes ambientais. A melhor crítica que vi sobre a polêmica, diga-se de passagem.
A terra tá esquentando e a gente aqui…. se encontrando.
Filamentos é um grupo de leitura e debates mediado pela Ana Rüsche (@anarusche), com encontros mensais em que discutimos literatura e mudanças climáticas. Participei da primeira edição e afirmo, com tranquilidade, que Ana Rüsche me ensinou tudo que sei. É uma das vozes mais relevantes e sensíveis sobre o tema no Brasil e ouvi-la uma vez por mês é um privilégio imenso. Alguns livros da programação são Uma ecologia decolonial – Pensar a partir do mundo caribenho, de Malcom Ferdinand (Ubu) e Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret (Bazar do Tempo) - sim!!! A Ana também tem um curso de narrativas com inscrições abertas aqui, para quem está se lançando na escrita.
Mari, também estou no Filamentos e cheguei aqui no seu Substack por recomendação da Ana (Rüsche).e Já estou me sentindo como se estivéssemos tomando chá e batendo papo à mesa da cozinha. Temos as mesmas questões queimando aqui dentro e gostei demais de como você divide o seu percurso pessoal. Eu não conhecia Levinas, mas tenho pensado bastante sobre isso de articular o possível com o objetivo lá da frente.
Oi Alice! Muito prazer! Ah, que demais! O Filamentos é uma comunidade incrível e a Ana uma daquelas pessoas catalisadoras das quais o mundo tanto precisa <3
Fico feliz que minhas esperanças angustiadas tenham ecoado aí. Não feliz pelo conteúdo delas, é claro, rs, mas porque sei que é sempre mais fácil quando a gente se dá conta de que não está só.
Quem me apresentou o Levinas foi meu companheiro e eu acabei conhecendo mais sobre em um podcast, que infelizmente só existe em francês (mas vai saber, hehe), o 'Les Chemins de la Philosophie' que me ajuda muito a ser menos leiga no assunto hehe.
Quem sabe esse cházinho rola um dia :D De qualquer forma, por enquanto, agradeço a troca por aqui e a leitura <3