A crise climática desafia as estruturas narrativas que passamos milhares de anos a sedimentar e, por isso, deveria passar no horário nobre.
Oiê,
Eu te escrevo na noite mais fria do ano, que seguiu um dos dias mais quentes. Neste mês, incêndios devastaram o Havaí e especialistas afirmaram que o fluxo de correntes marítimas que regulam a temperatura na Terra entrará em colapso até 2025 (mas não há unanimidade, você pode ler mais aqui. ). Por outro lado, algumas pesquisas (e o feed do meu Instagram) afirmam que o número de baleias na costa brasileira vem aumentando. Então, se você, igual a mim, precisa de um 10 de vez em quando, te aconselho a treinar seu algoritmo a mostrar pelo menos uma Jubarte neném por dia.
Pode ser muito fácil e tentador esquecer que estamos vivendo o declínio da nossa espécie e de muitas outras. Ninguém quer falar disso no bar (acreditem em mim, eu já tentei), ou nas redes sociais, ou nas festas de família, ou nas salas de roteiro. Afinal, é um assunto, no mínimo, deprimente.
A meu ver, porém, existe outra razão pela qual é fácil se esquecer desta bancarrota multiespécies que vivemos: nós ainda não aprendemos a narrar o colapso.
As notícias até mencionam a crise climática, a “ebulição global”, mas tudo isso ainda é uma abstração. Não temos histórias que deem sentido, ou uma trama que forneça um fio condutor a essas séries de fatos. A maioria das ficções que consumimos abordam o assunto de maneira MUITO tímida, quando abordam.
Focando no audiovisual, as narrativas que vemos no cinema, TV, streaming tem essa capacidade de formular nossa existência coletiva. Duvida? Quantas de nós não crescemos vendo filmes da Disney e comédias românticas com o Hugh Grant, só para precisar, depois de grande, reconstruir a nossa ideia de como uma história de amor pode ser vivida? (Obrigada bell hooks por nos mostrar a luz). Ou ainda por que lutamos tanto por representações mais positivas de pessoas LGBTQIAP+, racializadas, periféricas nas telas? Porque sabemos que as narrativas têm esse poder de atribuir significados e, portanto, moldar percepções e práticas na vida real.
Com grandes poderes, deveriam vir grandes responsabilidades, mas, até agora, a indústria audiovisual não parece ter entendido a parte que lhe cabe na representação da crise climática. Eu atribuo essa displicência a duas razões. A primeira, mais óbvia e já mencionei: Aff, chatão falar disso. A segunda, é muito mais complexa e, portanto, interessante.
As estruturas narrativas clássicas que usamos até hoje não comportam a crise climática. Da jornada do herói, aos cinco atos, passando pelo ‘story circle’, todas elas precisam de um protagonista/herói, com um objetivo/conflito claro e uma redenção no final. A personagem sai de seu mundo comum, vive uma série de aventuras e volta para casa no fim, tendo aprendido uma lição que é, ao mesmo tempo, individual e universal.
Ora, a crise climática se opõe a esta fórmula em mais de uma maneira. Para começar, não há herói (ou heroína, ou heroíne) possível na crise climática, há coletivo, participantes de um grupo não-hegemônico que terão que combinar ações distintas e, muitas delas, pouco gloriosas na luta pela sobrevivência. Além disso, não existe um conflito ou um objetivo claro. Por onde a gente começa? Salvando os Oceanos? Mas salvando de quê? A crise é sistêmica e por isso é difícil decidir qual conflito abordar. Além disso, as possibilidades de redenção são improváveis e até soariam como inocentes. Não parece mais ser possível que a ação do homem leve o mundo em direção a um lugar melhor do que quando começou.
Você já percebeu o quanto as narrativas ficcionais audiovisuais que tentam falar do colapso climático soam insuficientes? Eu pelo menos não encontrei nenhuma que merecesse ser indicada como um exemplo positivo, só talvez “Alcarràs”, que mencionei há dois meses aqui. Se você conhecer alguma interessante, comenta aqui ou me manda um alô?
Como roteirista audiovisual, continuo tateando fórmulas que nos permitam contar ficções climáticas de um jeito que não reduza a nossa experiência com o tema. A proposta que, até agora, mais me contemplou foi “A teoria da bolsa de ficção” da (magnânima) Ursula K. Le Guin, em que ela traz a bolsa como uma imagem oposta à lança do herói. O contar histórias seria muito mais próximo do movimento de recolher fragmentos narrativos do que um gesto abrupto com um fim determinado. Vou deixar a indicação do texto (curtíssimo) ali embaixo e recomendo muito a leitura.
O meu palpite é que a crise climática não estará tão cedo no Oscar, ou na novela das 9, ou talvez, sim, mas da maneira errada, o planeta salvo por um homem branco (ou azul?). Para representá-la, precisamos desafiar as estruturas narrativas. Não falar mais de heróis, mas de povo, coletivo, interesses compartilhados. Esquecer o clímax, pensar em processos. Não aspirar à verdade universal estampada na jornada de um único herói, mas abraçar a incoerência refletida da fruição de todes que fizeram parte do caminho.
E, para desafiar nossas estruturas narrativas, precisamos também desafiar todas as outras, o tempo todo. É preciso nunca se deixar esquecer, mesmo que os algoritmos, a novela, o último filme da Greta, insistam em nos distrair, que a vida na Terra segue, sim, em colapso.
(Por favor, não deixem de me chamar para o bar!)
Obrigada a todes pela leitura, pelos comentários, mensagens e pela troca desde a última cartinha. Agradeço também às pessoas que se inscreveram neste último mês <3 Se gostou, compartilha nas suas redes ou curte aqui? Críticas e sugestões também são bem-vindas.
Se o mundo não acabar, nos vemos em breve.
Um beijo,
Mari.
Recomendações quentinhas (:
A terra tá esquentando e a gente aqui…. lendo.
Como já falei do conteúdo, vou falar um pouco da forma desta edição linda da N-1. Foi um dos livros mais legais que já manuseei. Ele tem postais “escondidos” em suas páginas, o que transforma o livro em uma “bolsa”, um objeto no qual se abrigam histórias, abraçando a teoria de Ursula. É um projeto gráfico que faz jus à obra tão enxuta e revolucionária.
A terra tá esquentando e a gente aqui… bailando.
Dia 05 de setembro é dia da Amazônia. Em várias cidades acontecem shows e eventos com ações ligadas à proteção do bioma. Aqui em São Paulo, no Tendal da Lapa, no domingo, dia 03, rola pelo segundo ano o Baile na Terra, um dos eventos mais legais em que fui ano passado. Recomendo muito, não só pela importância da data, mas também porque as atrações são incríveis e o espaço é delicioso. Ah, dia 05 também é emblemático para a votação no STF com relação à tese do Marco Temporal. Se você não estiver em São Paulo, pode procurar um evento em sua cidade ou cadastrá-lo no site “Virada Amazônia de pé” .
E, só pra não esquecer: Marco Temporal jamais.
Depois do papo no grupo do filamentos finalmente pude passar aqui pra ler a edição com calma. Obrigado por trazer este pensamento/questionamento! Essa semana que passou, numa mesa de bar, surgiu o assunto de coletivo/indivíduo na ficção e lembrei de nosso papo na hora. De alguma forma a ideia tá se espalhando e essas narrativas serão mais frequentes (tenho esperança).
A M E I